Contos, crônicas e crítica literária de Alder Teixeira

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Jecas e Peris

Vira e mexe, leio ou ouço falar em "complexo do vira-latas". Muitas vezes, num vezo que é bem brasileiro, usa-se a expressão sem o pleno domínio do seu significado. Coisa da onda, um tipo de modismo que não raro leva o falante a dizer tolices. Mas, afinal, o que é esse "complexo" ordinariamente atribuído ao brasileiro? De que cabeça iluminada terá nascido a expressão? Corresponde ela, de fato, à realidade? Somos os brasileiros portadores desse desvio de personalidade? Vamos ao histórico da malsinada expressão.

Era 1958. A seleção brasileira viajara para a Suécia onde disputaria a Copa do Mundo de Futebol. Sua classificação fora sofrida: 1 a 0 sobre o Peru. O país ainda vivia o trauma da derrota em 1950, em pleno Maracanã, resultado que levaria os brasileiros a desacreditarem de suas possibilidades em tudo que exigisse deles a confiança da vitória. Se viesse, ela, a vitória, era atribuída à benevolência dos anjos e dos deuses, obra do acaso, filha do talvez ou do quem sabe. Menos por nossos méritos.

Em meio a essa descrença visceral, contrapondo-se ao que parecia ser mesmo um consenso, o dramaturgo, romancista, contista e cronista pernambucano, radicado no Rio de Janeiro, Nelson Rodrigues, profetizava o sucesso da canarinha em gramados europeus: "Eu acredito no brasileiro e pior do que isso: --- sou de um patriotismo inatural e agressivo".

Para ele, não nos faltavam craques, nem competência técnica, nem inventividade estratégica. Nosso problema, dizia, era não ter confiança em nós mesmos, e tremer diante de qualquer adversário que, à maneira de Obdulio Varela, o nosso algoz em 50, nos fizesse cara feia: "Qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção --- temos dons em excesso".

Num lampejo de inspiração, coisa que jamais faltava a este exímio cronista (como dramaturgo é, hoje, quase uma unanimidade), referiu-se a esse sentimento de inferioridade, a essa incapacidade de agir com desassombro, a essa inépcia etc., com a expressão ainda hoje usada para definir um traço marcante da 'identidade' brasileira: Tínhamos o que chamou de "complexo de vira-latas".

Mas a coisa não é tão simples assim. Diante de qualquer sucesso, a exemplo do que ocorre cada vez que conquistamos uma Copa do Mundo, esse sentimento de inferioridade, essa descrença mórbida e paralisante, como se num passe de mágica, transforma-se num ufanismo desregrado e ingênuo, à maneira do Conde Celso, e nos sentimos imbatíveis, "Sansões" empoderados até a raiz dos cabelos. Cresce a nossa autoestima, agiganta-se o nosso amor-próprio, a nossa utopia sem limites.

Nelson Rodrigues, ele mesmo a nos exaltar após a conquista da Jules Rimet: "Já ninguém mais tem vergonha de sua condição nacional", afirma na crônica O Brasil em Campo, "e as moças nas ruas [...] andam pelas calçadas com um charme de Joana d'Arc. O povo não se julga mais um vira-lata. [...] O brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas".

Para o bem ou para o mal, mais adequado seria falar-se de um "complexo do pêndulo", uma vez que nos é própria a ciclotimia inata, e, desde as origens mais remotas, estamos a balançar entre polos opostos, ora tocando o negativismo, ora a fé radiante; ora enlevados ao sabor das fantasias, ora mergulhados numa tristeza incurável. Mistura de Jeca Tatu e Peri, vamos cavalgando o dorso duro e escorregadio da História. Eis a nossa sina, até o sem-fim dos tempos.

 

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Gosto se discute, sim

Do professor, vira e mexe, alguém quer saber: "Afinal, gosto se discute?" A questão, de aparência tão simples, exige cuidados, nomeadamente para quem, como eu, dedicou seus dias a falar prioritariamente da Arte.

Antes da resposta, precipitação a que me recuso lançar, formulo outra questão: "De que 'discussão' estamos falando?" É que o juízo de gosto (Kant), jamais pode ser visto como um juízo de valor. O mesmo se dá em contrário, ou seja, não posso atribuir a algo um valor tomando por base o meu gosto.

A estética kantiana é formulada não como uma dimensão objetiva, fisicalista, pautada pelo raciocínio lógico. A reflexão estética, para ele, passa por estados mentais, subjetivos, estando por isso voltada para as condições de receptibilidade, do prazer do sujeito.

Não me causa espécie, nem desmerece o meu interlocutor, quando diz: "Adoro a música sertaneja!" Vá lá, que goste e descubra na sua experiência estética algo que lhe dê prazer, que lhe faça ver naquele tipo de música a Beleza que é em si uma das funções da arte, ou melhor, que pode ser definida como a função estética da arte.

No entanto, se tomasse essa declaração do meu interlocutor como um juízo de valor, seriam outros quinhentos. Isso porque, com um mínimo de conhecimento musical, teria como evidenciar que a música de Tom Jobim, de Egberto Gismonti ou mesmo o violão de Raphael Rabello, exigem uma capacidade elaborativa, um senso estético, uma sensibilidade artística muito mais rebuscada, porque pautada pelo domínio do instrumental teórico.

É que não se pode confundir capacidade analítica com experiência estética. Eu amo a interpretação de Roberto Carlos (quase a perfeição), mas jamais incorrerei no erro de afirmá-lo maior do que Luciano Pavarotti.

Há quem afirme, e, bom bergmaniano, aceito: "Não gostei de Morangos Silvestres." Jamais acharia razoável, contudo, ouvir: "Este filme é ruim." Ao emitir seu juízo embasando-o no juízo de gosto, num tipo de subjetivação despretensiosa (o prazer desinteressado com que Kant define o Belo), e através dele atribuir ao filme um valor, o espectador incorreria num erro de análise, ignorando o que existe em Bergman de procedimentos cinematográficos de elevada qualidade estética: roteiro, montagem, escolha de planos, movimento e angulação de câmera, textura do fotograma, recursos de iluminação etc., além de mergulho na alma humana, de sondagem do conflito do homem a partir da memória. Gosto, nessa perspectiva, pode e deve ser discutido.

Como li há poucos dias num artigo sobre a crítica política, assinado por Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia, "há coisas de que não gosto, mas que podem ser sublimes em seu gênero".

Diz ele: "O gosto e as preferências continuam sendo pessoais ou coletivas, mas as razões pelas quais gostamos, os programas executados em uma determinada obra, as soluções encontradas pelo realizador e sua originalidade, os padrões que orientam o que é considerado medíocre ou sublime, tudo isso é discutível". Perfeito.

Aliás, também em política, como em tudo na vida, gosto se discute (principalmente nela) quando trabalhamos com elementos, informações, histórico, provas cabais daquilo que está envolvido em nosso juízo.

Quando um lado abomina a democracia, o outro não; quando um lado faz a opção dos endinheirados, o outro não; quando um lado desconhece a necessidade de reparação para com negros e indígenas, o outro não; quando um lado exalta a tortura, o outro não; quando um lado é homofóbico, misantropo, o outro não; quando um lado propõe a volta de um regime autoritário, que prende, tortura, mata, o outro não etc., a discussão em torno do gosto ajuíza o meu "lugar de fala" como homem de esquerda, que considera muito ruim o que a extrema direita propõe.

Nesse caso, sem meias-palavras, afirmo: "Gosto, se discute, sim." E revela o homem.